Estamos diante de um novo e enorme desafio para continuar a sonhar e acreditar que, por um virtuoso processo democrático, poderemos fazer as transformações ecossociais necessárias em busca de direitos iguais na diversidade, proteger a integridade do comum natural e criar modos saborosos de viver. O sonho democrático reemergiu com potência no Brasil com a vibrante onda de renovado sindicalismo e novos movimentos sociais dos anos 80 do século passado. Foi fundamental, também, o movimento da Anistia e a pactuação de forças expressa no “Diretas Já”. A participação de cidadanias ativas diversas foi decisiva na luta contra a violenta ditadura militar e alimentou o processo de institucionalização democrática com a Constituição de 1988.
Conquistamos assim uma base legal fundamental, ainda em
vigor, mas insuficiente por si só para uma democracia virtuosa. A tarefa das
cidadanias apenas começava e não havia acabado. Fazer democracia exige um
processo de engajamento contínuo e intenso no seio da sociedade civil, em
suporte e mais além do que podem fazer as instituições de poder e as políticas
públicas estatais. O resultado que temos está aí: uma democracia de importantes
avanços, mas encurralada. Mudamos, sim, mas pouco e sem perspectivas de sair de
um atoleiro complexo. Não estamos conseguindo avançar em transformações nas
estruturas e processos de destruição e exclusões ecossociais que remontam à era
colonial e parecem impossíveis de serem enfrentados. Pior ainda, voltamos a
viver uma situação clara de ameaças à própria democracia duramente conquistada.
Com estratégias como a Lava Jato e o Golpe Parlamentar de
2016, entramos num processo de desconstrução das mais importantes conquistas
democráticas de direitos e políticas públicas, até então. Tudo agravado com a
perda eleitoral, em 2018, para um capitão truculento, com firma adesão da
direita empedernida e com o apoio de amplos apoios de setores médios e populares,
com discurso autoritário e com cumplicidade de oficiais militares e total
adesão do financismo parasitário. O governo de direita entre 2019-2022, com
aberta proposta autoritária de aprofundamento capitalista, “abrindo a porteira
e deixando a boiada passar”, foi destrutivo de tudo que apontasse para direitos
ecossociais e para pobres, altamente nocivo à democracia. Não foi novidade se olharmos a nossa
história, onde sempre prevaleceu um capitalismo assentado na destruição e
exclusão ecossocial, voltado para fora e sem regulação.
Retornando ao nosso processo político mais recente, dos
últimos 10 a 15 anos, é forçoso reconhecer que estava ocorrendo uma profunda
transformação no seio da própria sociedade civil e que o bloco
democrático-popular não havia dado a devida importância. Este processo,
contando com poderosa estratégia de comunicação, financiada e articulada até
pela extrema direita mundial, difundiu ideias e teses autoritárias e
excludentes. Por pouco, muito pouco, não entramos numa nova etapa e nova forma
de regime autoritário. Felizmente conseguimos conter temporariamente tal onda com
a apertada eleição de 2022, quando venceu a ampla aliança em torno a Lula.
Mas estamos longe de celebrar o fim da ameaça à nossa frágil
democracia. Na verdade, o que temos dificuldade de admitir é que estamos diante
de uma direita contrária a qualquer forma de democracia participativa e
transformadora. O câncer destrutivo já está fortemente implantado na sociedade brasileira,
com apoios amplos dos setores do atraso, como agronegócio, mineração, milícias
e crime organizado, redes mundiais da direita autoritária, além dos mercadores
da fé. Além disto, está demonstrando grande habilidade em termos de comunicação,
com fakenews, em disputar hegemonia
política, no sentido de definir sentidos e rumos para o Brasil.
O que conhecemos de nossa triste história de colonização e
massacre dos Povos Originários, da selvageria da escravidão, do mandonismo
expresso no coronelismo e patriarcalismo, da truculência militar e dos
milicianos a seu serviço, entre tantos “desastres”, tudo ajuda a entender as
raízes históricas do que somos como país. Mesmo os muitos estudos e debates
mais recentes, sobre dependência, centro-periferia, imperialismo, militarização
e a globalização capitalista, tudo, sem dúvida, nos moldou e ajuda a entender o
complexo que temos de exclusões, desigualdades, dominação e destruição. Por
isto, são aspectos importantes em qualquer análise.
No entanto, os elementos acima são o quadro de fundo e não
bastam para entender as especificidades de cada conjuntura política em nosso
país. Precisamos, analítica e politicamente, avaliar como se forjam as correlações
de forças políticas no momento presente e as “brechas” para ação. Isto é
indispensável para qualquer ativismo e fazer político, mas especialmente para
avaliar possibilidades e momentos para avançar com processos transformadores.
Aliás, quem prega autoritarismo e combate a democracia também precisa avaliar
os momentos e oportunidades nas correlações de forças. Ou seja, sempre é e será fundamental entrar
profundamente nos processos políticos internos de construção e disputa de
hegemonia política. Trago isto para que tenhamos claro que precisamos nos
entender a nós mesmos, ver quem é quem, o que se pensa e se “prega”, quem se
comunica com quem e como isto chega até nós, aos nossos lares, espaços de
vivência e trabalho, territórios, enfim, onde levamos a vida. Só para reforçar
este ponto, o que considero potentes movimentos de cidadania ativa são aqueles
movimentos sociais e políticos que fazem de tal tarefa de diagnóstico o seu
alimento do dia-a-dia, permitindo ver onde há saídas e como agir.
Nesta altura, avanço uma hipótese de análise que aponta um
grande desafio político do presente momento político nacional. Não estamos
dando a devida atenção e importância ao “estrago” que a direita autoritária já
fez, está fazendo e ainda poderá fazer com sua estratégia de construção e
disputa de hegemonia política na sociedade brasileira. A “ficha ainda não caiu”
para a maior parte das cidadanias ativas pela democracia ecossocial
transformadora. Precisamos fazer constantemente uma avaliação política
consistente e de um ponto de vista democrático do que esta direita renovada
representa como força política e, assim, saber como avançar e onde incidir.
Temos muitos dados e estudos sobre as raízes coloniais e
econômicas capitalistas de nossas destruições, exclusões, violências e
desigualdades, com um poder estatal subserviente aos donos de gado e de gente.
Este é um dado estrutural que trava da democratização mais profunda de nossa
sociedade. Expandimos e crescemos, mas sempre destruindo a base natural e em
benefício de poucos, pois até hoje somos um país voltado para fora e dependente
de mercados globais, de costas para as maiorias que aqui vivem.
O que nos faz falta? Se as cidadanias em sua diversidade são
os sujeitos instituintes da democracia estatal pelo voto, por que ficamos
esperando mais intensidade do poder estatal nas transformações econômicas,
ecossociais e políticas e não fazemos valer mais o nosso poder coletivo de
propor e exigir tal intensidade? Afinal, o encurralamento da democracia é algo
que revela o que somos como cidadanias ativas democráticas. Somos nós, cidadanias,
que delegamos poderes aos mandatados,
pelo voto, para gerir as instituições estatais. Eles são e sempre serão
dependentes das cidadanias que, soberanamente, os empoderam em funções estatais.
Soubemos acabar com a ditadura décadas atrás, mas... cadê as propostas e as reformas
de base? Como continuamos disputando ideias, princípios, valores e direitos
numa sociedade fundada na exclusão e desigualdade? Sim, conquistamos políticas
emergenciais e compensatórias, mas elas não avançam em direitos e
transformações. Assim, ficam grandes e incontornáveis questões sem solução democrática
a vista, o que gera um ambiente propício à volta de novas ameaças da direita, destrutivas
da democracia enquanto modo de viver coletivo.
A política, por definição, é disputa, luta de classes, motor
da história. Mas esta luta não é tão simples como a afirmação, pois existem
nuances, divergências e alianças, rupturas súbitas, aventuras e surpresas.
Enfim, trata-se de um processo político em permanente ação, tensão e evolução,
para lados muitas vezes imprevisíveis. As democracias não são o fim de
conflitos no seio da sociedade, mas são um pacto para a disputa segundo regras
legitimadas e institucionalizadas de disputar, como virtude construtora em
busca do possível na correlação de forças da conjuntura. Sim, rupturas são
parte da história, até de democracias. Mas a proposta de democracia não passa,
politicamente, de pacto sobre regras para o conflito de classes que move as
sociedades, em busca de acordos possíveis. Por isto, para mais e mais
democracia precisamos de mais e mais participação de cidadanias ativas e
radicalizadas por direitos, os mais iguais e includentes possíveis, em cada
momento histórico. A democracia não elimina o confronto de forças, mas se
alimenta de tais lutas para gerar soluções possíveis para o momento histórico
da correlação de forças sociais. Exige vigilância e participação permanente, Em
princípio, não existe limite para propostas de leis e políticas serem aprovadas,
desde que respeitadas as regras. Aliás, as próprias regras podem ser
disputadas, sempre em disputas legítimas definidas na Constituição. Por sinal,
até as Constituições podem ser mudadas se assim for o desejo da maioria. E o
caso de “revoluções democráticas”, como o 25 de abril de 1974, em Portugal. Mas
para gerar a “vontade coletiva” e, portanto, a demanda do que o Estado deve
fazer para garantir direitos, primeiro temos que olhar para a sociedade, agir
no seio da sociedade civil e disputar hegemonia política em busca de “direção
intelectual e moral” do processo político coletivo, como bem define Gramsci.
A questão da hegemonia é sempre uma questão central em
política. Hegemonia democrática tem que ser construída a partir do chão da
sociedade: sentidos, princípios, valores, ética, direitos individuais e
coletivos, identidade coletiva, propostas e políticas efetivas. Mais, qualquer
política democrática só pode avançar por pressão participativa das cidadanias.
Este é e será o pano de fundo da política e das suas relações
de forças sociais. A realidade histórica concreta de uma sociedade se move pela
luta e participação entre as diferentes forças, com transformações, empates,
recuos, tudo sempre momentâneo e não permanente, apesar dos tempos serem
extremamente variáveis. O próprio processo de disputa pode levar a conflitos
destrutivos e devastadores, como guerras internas ou entre diferentes
agrupamentos nacionais, na realidade do mundo atual. O fato essencial, para a
democracia, é a luta legítima em busca de mais e mais direitos, assentada na participação.
Jamais a participação democrática se resume às eleições e ao voto amplo. Greve,
ocupação, mobilização nas ruas, celebrações cívicas, passeatas, etc. fazem
parte da luta democrática. Nas lutas, sempre é possível diagnosticar os
interesses envolvidos, os princípios e valores éticos defendidos, os modos de
ver e agir das forças em luta, as grandes propostas mobilizadoras. Isto é
construir e disputar hegemonia como projeto de sociedade.
Estabelecido isto, volta à nossa situação atual, brasileira
e, num certo sentido, regional e mundial. Estamos diante de uma direita que
sempre esteve entre nós – hoje hegemonizada pelas forças capitalistas em busca
da acumulação sem limites, nos vários domínios sociais da atividade humana.
Mas, politicamente, estamos diante de um poderoso processo de renovação da
parte das classes dominantes menos propensa a aceitar o princípio democrático
de cidadania para todas e todos. Esta nova direita – cunhá-la de fascista não
resolve o problema de fundo de quem ela é – tem uma estratégia política de
afirmar seus interesses e valores como universais, para cada nação e o mundo
como um todo. Ela vem investindo muito e elaborando discursos de modos de ver e
propostas políticas para o modo de organizar a sociedade como um todo. Isto lhe
dá coesão e vitalidade e nos leva à defensiva. Pior, estão conquistando adesão ampla
em extratos médios e até no meio das classes sociais mais precarizadas, no
Brasil e em muitos outros países estratégicos. Estamos diante de uma nova onda
capitalista, para além da globalização das últimas décadas. Enfim, queiramos ou
não, estamos com uma democracia encurralada e nós, cidadanias diversas que
comungam princípios e valores democráticos ecossociais, também perdemos o
protagonismo ativo no processo democrático.
Estamos diante de uma direita que está sabendo se renovar na
defesa de seus interesses, ao menos mais do que nós que lutamos por democracia
ecossocial transformadora. Há um ponto central em qualquer construção e disputa
de hegemonia democrática que cabe destacar aqui. A construção de modos de
pensar, de ver problemas e questões, de propor soluções e de exprimir isto tudo
em ideias mobilizadoras que levam à ação, ao engajamento político.
Não falamos muito a respeito, mas o fato é que perdemos o
protagonismo nas ruas. Hoje é a direita que vem se mobilizado, protestando e,
até, organizando atos públicos com grande participação. A estratégia mais
importante desta direita renovada é a comunicação, especialmente em redes
sociais digitais para atingir
amplos setores populares. Com
falsidades? Sim, mas não só. Além disto,
com “mercadores da fé”no meio popular, de inspiração na direita norteamericana,
pregando o individualismo extremado e a virtude da meritocracia, numa moral individualista
de lutar por ganhar, onde Deus abençoa e recompensa os vitoriosos. Trata-se de
uma versão religiosa da busca do interesse individual capitalista a todo custo,
onde vence o mais competente, sem limites quanto a todos os demais. Tal
individualismo extremado legitima o capitalismo como sistema de “vitoriosos por mérito”. Não cabe aí nenhuma
ideia de igualdade de direitos, fundamental nos processos de democratização,
por sinal, processos sem limites enquanto sonho e desejo.
Para começar e tentar mudar, temos que reconhecer que, na
disputa de hegemonia, a direita e sua “pregação” por poderosas redes sociais de
comunicação, generosamente financiadas por grandes empresas, e pela adesão dos mercadores da fé, nos levaram
a um impasse ou, ao menos, ao curral em que estamos cercados, sem ver muitas
saídas. O fato de termos ganho a eleição de 2022 não quer dizer que as
cidadanias democráticas voltaram a ter hegemonia. Basta ver a composição do
Governo Lula III para entender o encurralamento em que nos encontramos. Sem
dúvida, é melhor do que um novo mandato para a extrema direita liderada pelo
inominável. Mas não estamos enfrentando o problema de fundo que impede o avanço
da democratização. E lá já se foi mais de um terço do mandato do atual governo.
Antes de tudo, precisamos diagnosticar profundamente a
estratégia de comunicação a serviço do “boslonarismo”. Não basta o poder
Judiciário fazer o que faz, criminalizando as tais “fakenews” e seus produtores
e emissores, com cumplicidades dos super ricos proprietários das plataformas
digitais. Precisamos nós mesmos entrar na luta da comunicação, de sentidos e
rumos da democracia para o Brasil de direitos ecossociais na diversidade do que
somos. São duas frentes de luta, do poder democrático instituído, e as lutas da
cidadania no seio da sociedade. A virtude não vai vir do poder, pois se vier só
pode vir do campo da sociedade civil e de suas cidadanias ativas.
Termino voltando ao título. A estratégia de comunicação a
serviço da direita renovada está nos levando de volta a uma situação de perda
do comum que nos une, pois acentua a sua diferença de valores e princípios que
justificam a exclusão de amplos setores já hoje marginalizados e periferizados.
Eles estão sabendo articular os fundamentos clássicos da direita e do fascismo
e de autoritarismos passados – “Deus,
pátria e família”, mas de forma renovada, buscando a adesão de setores médios e
populares, a meritocracia como virtude e não privilégio, a própria religião
como definição de identidade comum numa concepção étnica excludente em termos
de nação, que leva a combater migrantes
e os “diferentes”, praticam o machismo e aceitam a violência como legítima
defesa, negam a ciência e a mudança climática, estimulam a colonização e
ocupação de terras de Povos Originários e Tradicionais.
Enfim, estamos perdendo a disputa das ideias e propostas. E
estamos em perigoso processo de perda de sentido do comum e do pertencimento à
coletividade, essenciais para construir democracia. Isto é particularmente
grave no meio mais popular das classes marginalizadas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário